sexta-feira, 9 de junho de 2017

Uma pandemia silenciosa




 Há mais de 500 anos atrás sobre este solo proclamava-se “em se plantando tudo dá”. Em sua carta ao Reino, Pero Vaz de Caminha exaltava o grande êxito de sua missão expedicionária na fase das grandes navegações e conquistas. De fato, o Brasil tem das mais belas diversidades culturais e imateriais da humanidade.   

O povo brasileiro original e conquistador, embrenhado na mata, no roçado, no paiol, fez ao longo de centenas de anos o que a cultura efervescente dos povos em geral faz - inventava as maiores tradições culinárias e degustativas possíveis com sua criatividade e exuberância natural, no caso a intangível e internacionalmente celebrada culinária tradicional brasileira. 

E de alto valor nutritivo.

Pero Vaz de Caminha não estava de todo errado: em se plantando (quase) tudo dá. Entretanto, sem talvez perceber, naquela carta antevia-se ali que tamanho êxito não poderia ter sido maior: fadava-se por vez a colônia - Brasil - à condição de “fazenda do mundo” como somos vistos até os dias de hoje. O Brasil segue atualmente sob a mesma ótica de condição de colônia, não apenas pelos patrícios de então, mas pela noção determinada pelos interesses macroeconômicos mundiais: de que o território não mais nos pertence, mas sim ao mercado de commodities.
 
Ao longo desses cinco séculos passados, a associação de fatores como o advento das metrópoles, a mobilidade urbana a grandes distâncias percorridas em lenta e agonizante trajetória, a conveniência de obtenção de alimentos prontamente acessíveis, a demanda por simplicidade em armazenamento e boa estabilidade a longo prazo, e a necessidade de alimentos de baixo custo, levou à busca e consolidação por uma matriz alimentar gerenciável por técnicas agrícolas mecanizadas extensivas de alta produtividade.  

Em questão de pouco tempo, em apenas 2 a 5 gerações, a humanidade experimentou um panorama alimentar (“foodscape”) completamente novo, diferente de tudo aquilo ao qual o organismo humano teria sido acostumado ao longo de milhares de anos de adaptação e evolução. Hoje a base alimentar da população mundial ocidentalizada está estabelecida sobre grãos e outros gêneros de elevado valor energético, mas de baixa densidade nutricional, sobre óleos de sementes altamente refinados e outros tantos sintéticos (trans e interesterificados), grande consumo per capta de açúcar, aditivos químicos, combinados em uma forma ultraprocessada, e embebidos em vistosas embalagens com dizeres atrativos sobre possíveis benefícios a saúde e acompanhado de listagem de composição e uma tabela nutricional incompreensíveis para a maioria. 

Neste cenário de expansão das sociedades afluentes amparado por essa nova matriz alimentar ultraprocessada, silenciosamente o estado de saúde até então dito “normal” dá lugar ao “comum” em meio a novas e idiopáticas condições fisiopatológicas que emergem silenciosamente: 

hiperglicemia, 
hiperinsulinemia, 
hipertensão, 
dislipidemia, 
obesidade, 
câncer, 
doenças autoimunes, 
neurodegeneração,
dentre outras doenças de cunho metabólico. 

 São doenças não infecciosas, não-parasitárias, um novo paradoxo que Oswaldo Cruz e outros grandes nomes das ciências da saúde não conheceram, doenças ditas não-comunicáveis que se tornaram uma pandemia mundial pela ocidentalização da cultura da bonança alimentar, do tudo por dinheiro, que não impõe limites ao capital estimulando ao máximo o consumerismo, levando a prejuízo por fim da saúde do povo, da humanidade.


Hoje se investe internacionalmente consideráveis somas de recursos públicos e privados em ciência no estudo de bases moleculares dessas doenças da modernidade, as novas mazelas criadas pelo homem: a forma de se alimentar e seu estilo de vida, conseqüências também de suas ações sobre a natureza, que rebatem sobre seu próprio organismo e de suas gerações seguintes, mexem com sua epigenética e exercem ações que passam, por exemplo, por desrupção de microbiota simbiôntica intestina, novo painel macronutritivo e adaptação metabólica no próprio organismo e sua prole, doenças autoimunes e severa deficiência em micronutrientes. Tudo na mais vã tentativa de se obter aquela sonhada bala de prata, a grande descoberta científica que permitirá obter o mais novo fármaco revolucionário ou incremental na terapia de doenças metabólicas degenerativas da modernidade. E que será usada apenas paleativamente, enquanto deveriamos estar promovendo a prevenção.



Paradoxalmente, a restituição de saúde e promoção da longevidade não parece interessar macroeconomicamente, pois só aumentaria a idade populacional, a quantidade de pessoas dependentes de sistema previdenciário, do uso de sistemas particulares e públicos de saúde, e um grande numero de pessoas de maior idade que não contribuem para o crescimento econômico. E menor consumo de bens, salvo medicamentos.  
  
Com 7 bilhoes de comensais em casa e uma projeção de 9 bilhoes para os próximos anos, seguimos em uma nova marcha do progresso da evolução humana, resultando em uma humanidade doente em um planeta doente.  Sob a ótica macroeconômica isso é ótimo: ela está aquecida. Sob a ótica da biosfera isso é nada mais que consumerismo concomunado com a depreciação de recursos naturais somado a agricultura extensiva e pecuária intensiva não-orgânicas, fadando o homem e outros animais a estado permanente de doença e, eventualmente, desaparecimento da espécie.


 A sociedade fez da cornucópia uma caixa de pandora, aberta por mãos imbuidas da bonância e ganância. Desta sairam os males que nos acometem atualmente. 

Segundo o renomado bioquímico e antropólogo Jared Diamond, Prof. da Universidade da Califórnia e estudioso de sociedades e mecanismos pelas quais surgiram e colapsaram, a conquista da agricultura foi o pior erro da humanidade e seguindo o curso atual poderemos vivenciar uma nova idade da pedra daqui a cem anos

Sob certa ótica, não soaria má idéia retornar à era neolítica ou talvez paleolítica. Poderia em verdade vir a ser um grande benefício para a humanidade, cerrando de vez a tampa do mito grego e ofertando à biosfera o que lhe resta de esperança.


  

 Leitura Recomendada & Referências. 


 ·         Barbara Fraser. “Deforestation: Carving up the Amazon - A rash of road construction is causing widespread change in the world's largest tropical forest — with potentially global consequences”. http://www.nature.com/news/deforestation-carving-up-the-amazon-1.15269 


·         EcoWatch. “How Organic Farming Contributes to a Sustainable Food System”. http://ecowatch.com/2013/01/15/organic-farming-sustainable-food/


·         Jared Diamond. “We Could Be Living in a New Stone Age by 2114”. http://www.motherjones.com/environment/2014/04/jared-diamond-inquiring-minds-humanity-survival


·         Jared Diamons.  The Worst Mistake in the History of the Human Race”. http://discovermagazine.com/1987/may/02-the-worst-mistake-in-the-history-of-the-human-race    


·         Mark Bittman. “Now This Is Natural Food”. http://www.nytimes.com/2013/10/23/opinion/bittman-now-this-is-natural-food.html?_r=0
 

·         Myers et al. “Human health impacts of ecosystem alteration”. http://www.pnas.org/content/110/47/18753
 

·         Nature. “Farmed salmon harbour pollutants. Study may undermine salmon's status as a 'healthy' food”. doi:10.1038/news040105-10. 


·         The Telegram. “China says 1/5 of its farmland polluted”. http://www.thetelegram.com/Business/2014-04-18/article-3694693/China-says-1-5-of-its-farmland-polluted/1


·         Tom Philpott. “Chicken Nuggets, With a Side of Respiratory Distresshttp://www.globalpossibilities.org/chicken-nuggets-with-a-side-of-respiratory-distress/


·         Tom Philpott. “Our Alarming Food Future, Explained in 7 Charts”. http://m.motherjones.com/tom-philpott/2014/05/6-alarming-facts-food-and-global-warming
 

·         Valor Econômico. “Um gigante agrícola com 'pés de barro”. www.valor.com.br/agro/3528630/um-gigante-agricola-com-pes-de-barro 

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